O que é isso de “dissident right”?

Em novembro de 2013, a revista American Renaissance publicou uma entrevista com o filósofo francês Alain de Benoist, em que este afirmava: “We are clearly at the end of something” [Estamos claramente no fim de algo]. Há tanto de desejo como de previsão nesta frase: como principal representante da Nova Direita Francesa, Benoist desenvolveu o seu pensamento metapolítico em torno do esgotamento da matriz da modernidade; mas as turbulências do nosso tempo (e o modo desconfiado como tendemos a olhar agora para as soluções liberais) tornam o seu diagnóstico perspicaz:
“na Europa, temos a impressão de que o sistema político esgotou todas as suas possibilidades. Temos a crise financeira, que é, para mim, uma crise estrutural e não contingente do capitalismo. (…) Ao mesmo tempo, temos problemas ecológicos, demográficos e de imigração. Estamos claramente no fim de algo. Provavelmente no fim da modernidade.”
Estaríamos, assim, num momento de transição e em que todas as possibilidades estão em aberto, pelo que as formas e categorias que utilizamos nas últimas décadas para interpretar os fenómenos políticos parecem perder a sua utilidade. Aceitamos, com relutância, novas palavras para nos referirmos a movimentos que expressam essas mudanças e confirmamos se as novas soluções políticas se encaixam nas antigas definições. Não é, por isso, surpreendente que o filósofo norte-americano Peter Boghossian tenha dedicado uma sessão do seu Spectrum Street Epistemology à questão de saber se o movimento MAGA [Make America Great Again] é ou não um movimento conservador.
Desde a turbulenta entrada de Donald Trump na dinâmica do Partido Republicano que a direita nos Estados Unidos tem estado em transformação. Contra os movimentos mais conservadores que nele coabitavam, a representação MAGA foi ganhando dimensão e assumindo-se como uma reação ao consenso pós-segunda guerra mundial que instituiu uma visão politica e moralmente progressista, ao establishment tecnocrático que marcou o final do século XX e, mais recente, aos excessos do wokismo que se impuseram na sociedade norte-americana.
Defendendo uma transformação do sistema e da sociedade, dificilmente o movimento MAGA pode ser considerado parte da tradição conservadora, pelo que o partido parece estar hoje condenado a uma profunda cisão entre conservadores tradicionais e aqueles que invocam a necessidade de uma alteração mais ou menos radical da sociedade norte-americana e que, assumindo diferentes formas e inclinações, têm vindo a ser designados como “direita dissidente”.
2 A direita dissidentePara alguns autores, essa dissidência à direita teria começado já no primeiro mandato de Barack Obama com a criação do movimento Tea Party, preocupado com os excessos intervencionistas de um presidente que os seus membros entendiam como socialista. Mas é possível que este movimento deva ser visto mais como uma posição de insurgência do que de dissidência, ou seja, como clamor que procurava recuperar os valores iniciais dos protestos de 1773.
Já a categorização como direita dissidente parece remeter para um questionamento do próprio paradigma liberal que marcou o nascimento dos Estados Unidos, ao considerar que o liberalismo esgotou os seus recursos ou que foi o próprio liberalismo a produzir o atual estado de coisas. A direita dissidente assume, assim, uma dimensão política iliberal, e é nesse sentido que a Alt-Right (a direita alternativa) foi durante muito tempo a sua referência, com os seus fundamentos nativistas e as suas ligações a Richard B. Spencer e à Breitbar News. Steven Bannon terá sido a ligação entre esta direita e o primeiro Donald Trump, com associação a posicionamentos conspiratórios, como a Q-Anon, e a grupos paramilitares, como os Oath Keepers, que teriam estado envolvidos nos tumultos de 6 de janeiro.
Ao longo do mandato de Joe Biden, contudo, Trump foi estabelecendo novas coligações, que o aproximaram do mundo tecnológico da Sillicon Valley e de ideias tecnolibertárias, muitas vezes acompanhadas de uma dimensão racial. A escolha de J. D. Vance como candidato a vice-presidente poderia ser interpretada como resultado dessas influências: apesar de tradicionalmente associado ao pensamento conservador, Vance parece fazer aqui a ligação entre o mundo das finanças e das novas tecnologias aos movimentos mais reacionários, como é revelado pela sua referência ao intelectual Curtis Yarvin.
3 Os Neo-ReacionáriosCurtis Yarvin é o nome mais popular do movimento Neo-Reacionário, conhecido como NRx, e que tem como base os escritos que Yarvin assinou como Mencius Moldbug mas também o manifesto de Nick Land sobre Dark Enlightnement (o iluminismo das trevas, numa possível tradução para português). E o que liga todas estas personagens é Peter Thiel, o co-fundador da PayPal, que num texto de 2009 afirmou: “já não acredito que a liberdade e a democracia sejam compatíveis”.
Quais são as ideias centrais deste movimento neo-reacionário?
Por um lado, aqueles que subscrevem este movimento recusam o modelo de democracia liberal, baseado em eleições livres e exercício limitado do poder. Em sentido contrário, defendem que, considerando os desafios atuais, novas soluções políticas devem ser ponderadas. A proposta de Yarvin, na senda de Hans-Hermann Hoppe, é a instituição de uma espécie de monarca-CEO, capaz de governar o país como se de uma empresa se tratasse, não necessariamente de forma autoritária e exploradora, mas garantindo os melhores resultados para a população (uma espécie de déspota iluminado).
Por outro lado, estes pensadores subscrevem a lógica capitalista de mercado, aproximando-se do pensamento anarcocapitalista que é muito popular nos Estados Unidos (e que Yanis Varoufakis tem vindo a designar como tecnofeudalismo) – mas que assume aqui uma dimensão particularmente relevante tendo em consideração os desenvolvimentos tecnológicos: há uma crença quase religiosa nas potencialidades da tecnologia. Encontram-se, nesta medida, próximos das ideias aceleracionistas, que subscrevem a aceleração dos mecanismos capitalistas como forma de superar os seus problemas e tendo em vista a transformação absoluta da sociedade.
É esta a “woke right” de que falamos na semana passada? Não. Enquanto aquela designação pretende referir o crescimento de um discurso digital identitário e panfletário, esta direita dissidente tem substância conceptual e teórica. O problema é que, apesar de ter uma posição igualmente minoritária na sociedade norte-americana, tem maior poder político e económico para fazer valer as suas ideias, o que a torna mais perigosa.
E se não se aproxima da velha-Nouvelle Droite de Alain de Benoist, parece dar-lhe razão quando este afirma que a modernidade, e com ela o liberalismo, estará no fim: estes pensadores assumem que o mundo está já em transição para um paradigma pós-liberal. Terão razão?
observador